A encruzilhada

Ana Severo
3 min readMay 19, 2020

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A pena ganhei de uma Mãe de Santo em São Luis. Dançávamos ao som dos tambores que batiam forte, como na famosa música Tic Tic Tac do maranhense Carrapicho. Estava no meio da efusão de cores e ritmos, quando a senhora se aproximou. Trazia o corpo coberto de plumas, nos seios, nas mãos, nos pés, representando as índias no enredo do Bumba meu Boi. Fitas coloridas caíam como uma cortina em seu rosto escondendo o contorno indefinido. O imponente cocar projetava-se alto, preso em uma tiara de lantejoulas. Solene, embora sorrisse, tirou a pena de sua cabeça: Cor de sangue, para evocar o poder dos seus orixás.

Se a pena me protege, eu sei lá (no creo em brujas, pero las hay, las hay) — gosto de pensar que sim. Sempre me sinto poderosa ao lembrar aquela benção. Desafiada a publicar dez fotos do meu cotidiano nos tempos de quarentena, a primeira imagem que selecionei é a que vejo nesse mesmo instante quando viro para o lado esquerdo — um canto de minha mesa em formato da letra ele, de onde diariamente escrevo dividindo o olhar entre a janela e o computador. Um vaso que ao invés da flor solitária, abriga uma pena, um copo decorado com pinturas mouriscas, meus óculos e um pote de cerâmica marajoara compõem o retrato dos amuletos inseparáveis.

O pequeno copo é um daqueles souvenirs baratos de Granada. Senhora das heresias, diriam os mais sofisticados, gosto de tomar vinho do Porto ou um licor 43 naquele copinho de vidro. Talvez eu me transporte para a Alhambra e me sinta no palácio mais lindo que já vi. Tivesse vivido naquela cidade fortaleza moura no século XIII ou XIV, onde artistas, cientistas e intelectuais passeavam nos belos jardins de Generalife, teria certeza de estar no topo do mundo. Bárbaros sujos não poderiam destruir a beleza, a ciência e a poesia — estaria segura, ouvindo o correr da água canalizada em impressionante sistema de irrigação.

Associava atraso ao que fosse muçulmano, com indisfarçável preconceito de minha cultura judaico-cristã, até conhecer Granada. Tudo pode mudar, aprendi. No século XIV, explicou o orgulhoso guia turístico andaluz, eram os mouros os melhores médicos, engenheiros, arquitetos num reino onde havia permissão para diferentes religiões. A Alhambra era mais tolerante do que o reino de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que a conquistou em 1492, após séculos do califado de al-Andalus. Os católicos vencedores cobriram arabescos, apagaram pinturas e dourados, destruíram mobiliário, quem sabe para não terem que se defrontar com sua própria ignorância, tementes de que o prazer quase erótico daqueles espaços fosse condenado por seu deus inquisidor. Nem o mais duro dos corações consegue resistir tamanha beleza. Em gozo escondido, os vitoriosos devem ter perguntado a si mesmos se não era aquele um palácio divino, mantendo vivo o que podemos ver hoje.

A cerâmica marajoara que guarda lápis e canetas foi delicadamente decorada com sulcos que desenham tartarugas e riscos geométricos harmoniosos. É provável que a imagem utilizada pelo povo amazônico represente alimento — ainda hoje a carne de tartaruga é apreciada naquela região. Animal sagrado para vários povos do oriente e ocidente, a mim simboliza vida longa, lembrando a fábula de Esopo quando a réptil tenaz, com as patas firmes no chão, vence a apressada lebre.

Nem nos mais remotos pesadelos imaginei viver dias como os que estamos vivendo, presa em casa por meses. Nada de minha outrora vida externa. Um ritmo lento e o sentimento de que a vida está em suspenso. Medo de contaminar ou ser contaminada num abraço a quem amo. Medo de morrer ou matar. Surpreendentemente, estranha serenidade tem me acompanhado nesses dias, em substituição à ansiedade inicial. Triste, mas em paz. Nutro a mim mesma com pequenos prazeres diários, como o licor no copo mourisco. A arte e o belo são essenciais. Aceitei meu ritmo de tartaruga e a incerteza quanto ao que será o novo normal.

Nesse momento de reflexão e tristeza, de solidariedade e mudanças, de obscurantismo e vulgaridade, minha janela está virada para uma encruzilhada de ruas curvas: o mundo e eu na encruzilhada, evocando a benção dos Orixás. Espero que saibamos proteger nossa Alhambra.

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Ana Severo

Amante da literatura. Contadora de histórias. Economista, Gestora de políticas públicas, feminista, engajada em ações por um mundo de mais cuidado.