A Infratora

Ana Severo
3 min readJul 7, 2020

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Estava braba. Aliás, furiosa. Admitia que excedera a velocidade algumas vezes, mas ter que fazer aquele cursinho chato do DETRAN, como se não soubesse conduzir um carro, era demais. Claudia nunca tinha infringido a lei. A honradez e o respeito às regras eram valores inegociáveis. Envergonhada, perguntava a si mesma: como vou explicar aos meus pacientes que não posso dirigir? Seu pai interior completava: já imaginou se os meus netos resolvem operar um automóvel perigosamente igual à mãe?

Entrara com vários recursos após tomar ciência da injusta punição. Nenhum apelo aceito, um absurdo. O marido usou seu carro vez que outra e cometeu diversas infrações de trânsito. Os pontos foram para a carteira dela. Avisou para o esposo preencher o formulário avocando para si os delitos. O homem esqueceu e o dia fatal chegou. Carlo ainda tentou assumir a culpa, antes que a mulher o matasse. Era caso de vida ou morte, poderia dar até divórcio, suplicou. O funcionário público impassível justificou a decisão com o código, mostrando o artigo correspondente. Fora do prazo recursal. Nada a fazer.

A médica foi a pé para a primeira aula. Entrou na sala tentando ser discreta, a um minuto de começar o seu calvário. Balbuciou um constrangido desculpe, ao derrubar o caderno de um colega com sua enorme bolsa enquanto buscava uma cadeira vazia. Sentou-se na penúltima fila, com cara de poucos amigos. Turma de primeira habilitação. A professora era o centro das atenções enquanto discursava com voz solene sobre a importância de uma direção segura. Projetava fotos de acidentes sangrentos, destacando que as infrações de trânsito eram uma atitude assassina.

Avistou a elegante aluna de meia idade escondida entre os jovens. A lei é para todos, as burguesas não podem sair por aí achando que podem tudo. Que exemplo! Pensou tão alto, que nem precisava ter dotes paranormais para ouvir.

– Quem está aqui para a primeira habilitação?– perguntou, já sabendo a resposta.

Todos se identificaram, exceto Cláudia.

– Uma infratora. – disse, apontando a jovem senhora. – Esta mulher é um perigo e por isso está afastada das ruas – completou, acusadora.

Os colegas olharam para trás, curiosos. Claudia repetia para si mesma, o Carlo me paga. Sentia-se ardendo numa fogueira da Inquisição. A professora em tudo lhe usava como o exemplo a não seguir. Entre humilhada e culpada, reagiu:

– Com licença, eu não tenho culpa. – disse em alto e bom tom.

– Já viu algum criminoso dizer que tem culpa? Segundo eles, todos são inocentes. — remendou a professora.

Aquela comparação fez subir ainda mais o sangue de Claudia. Era cardiologista, pagava seus impostos, fazia caridade, até consultas sem cobrar, agora ser chamada de criminosa! Levantou-se e exigiu direito de defesa. Contou a história do esposo, reconhecendo que ela também cometera alguns delitos, mas não provocaram nenhum acidente.

– Reconheço meu erro. Já estou aqui, cumprindo a pena. Não é justo continuar sendo discriminada.

Um rapaz levantou repentinamente.

– Não vou deixar a dona aí sozinha confessando seus crimes. Eu também matei um. Mas já cumpri setes anos no xadrez e estou livre. Até tirando a carteira de motorista.

– É, eu também, fiz lá meus crimes, mas agora limpo, diz o outro, gordinho e barbudo sentado ao lado da janela. Dona, digo com experiência, melhor confessar.

– E eu colo em todas as provas, assumiu uma moça de roupa decotada, entrando na onda de confissões.

A sala parecia um culto carismático, todos ao mesmo tempo relatando seus pecados secretos: uso drogas, roubei do meu pai, matei um, dei uma surra na vizinha, e assim ia. A instrutora atônita pelo rumo que a sessão tomou, reclamava inutilmente o início da lição. O sinal bateu. Claudia saiu aliviada, seu pecado, afinal, não era dos piores.

– Dona, aceita uma carona?– oferece o recente parceiro, aquele que matou um.– Gostei muito do que a senhora fez, valeu.

Claudia sorri e recusa a gentileza, não deixando de reparar que o colega dirigia uma caminhonete sem habilitação. Mas que mal isto tinha? Quem não tivesse pecados atirasse a primeira pedra. Deixou sepultadas naquela insólita classe todas as suas culpas. Leve, seguiu o rumo da vida.

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Ana Severo
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Written by Ana Severo

Amante da literatura. Contadora de histórias. Economista, Gestora de políticas públicas, feminista, engajada em ações por um mundo de mais cuidado.

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