Precursores das redes sociais

Ana Severo
2 min readAug 21, 2020

Meus pais foram precursores das redes sociais. Ensinaram aos filhos que se sorríssemos, a vida sorriria para nós. O pai tinha uma coleção de livros do Napoleon Hill e do Norman Vicent Peale — para cada fase de insegurança que eu passava, recebia a sugestão de reler a “Lei do Triunfo” ou “O Poder do Pensamento Positivo”, guias práticos para o sucesso muito lidos naquela época. Minha mãe ia mais longe, para ela, o mal não era realidade, mas uma criação de nossa mente. Seguidora da Ciência Cristã, um movimento religioso fundado pela americana Mary Baker Eddy, sempre havia algum trecho da Bíblia ou do livro “Ciência e Saúde com a Chave das Escrituras” para mostrar que a doença, conflitos e fracassos não eram verdade, eu deveria ver a perfeição para que ela se manifestasse. Até os médicos eram dispensáveis, bastava corrigir o pensamento. Foi assim que muito cedo aprendi a disfarçar quando sentia algo negativo, afinal, eu estava vendo errado e tudo que não queria era desagradar.

Claro que tinha alguns furos na teoria, a começar pela infância do meu irmão mais velho, devastada pela meningite que lhe tirou a vida aos doze anos. O que ele teria pensando de tão negativo para merecer aquela vida limitada? — pergunta recorrente da menina que fui. A cada indagação, me atirava mais ainda no pensamento positivo, pretendendo não só salvar a mim mesma do temido pesadelo ou, quem sabe, até curar meu irmão. Também não entendia por que tantas pessoas passavam fome. Achava muito injusto que as leis cristãs da abundância e triunfo não fossem ensinadas para todos.

Hoje estamos todos dentro de casa, vivendo a vida por uma telinha. Uma pandemia matou milhares de pessoas no mundo inteiro, mas, mesmo assim, vejo uma onda de gente sorrindo nas redes sociais, confiante e bela. Alguns reclamam de gente que só fica divulgando notícia ruim. Vez que outra me aparece no feed ou nos stories a divulgação de uma live de como tornar a vida um sucesso. Coachs ensinam em um final de semana o bê-á-bá para contornar a crise, enriquecer e influenciar pessoas. Milagrosamente, pessoas que não tinham ganhado dinheiro algum na vida real, ficam ricas da noite para o dia vendendo um curso justamente de como ganhar dinheiro, baseado na experiência imaginária do ser que criaram. E aí me dou conta que, ao fim e ao cabo, meus pais tinham razão. Nas redes sociais, sou o que imagino ser. Qual é a vida real, aquela que crio ou a pequenez diária dos nossos dramas?

--

--

Ana Severo

Amante da literatura. Contadora de histórias. Economista, Gestora de políticas públicas, feminista, engajada em ações por um mundo de mais cuidado.