Tempo de Cuidar

Ana Severo
3 min readMay 21, 2020

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Tentei manter uma rotina que se assemelhasse àquela da pré-pandemia. Acreditando que seria só um tempo, transferi a agenda para o modo remoto. Minha vida era uma sequência de atividades, laborais, intelectuais, sociais, voltadas para fora. Fazer alguma coisa significava sair. Nas primeiras semanas da quarentena, achei que seria até bom ficar uns tempos sem fazer nada, no ócio criativo de Domenico de Masi. Quem sabe conseguiria arrumar armários, aprender história da arte ou culinária tailandesa? Todos aqueles livros que esperam ansiosos por serem lidos finalmente serão abertos, comemorei.

Meu marido e eu nos apressamos em organizar um rol de tarefas, não queríamos ser improdutivos. Registramos na parede da cozinha tudo que iríamos fazer. Claro que daria tempo de sobra. Com o passar dos dias e das semanas, porém, a lista começou a me deixar frustrada — não consegui fazer nem a metade de tudo o que planejamos. Fui me sentindo uma completa incompetente. Como não consigo dar conta dessa agenda?

Algumas atividades tomam muito mais tempo do que eu presumia. Como outras pessoas as exerciam no meu lugar, eu podia seguir naquela vida que não tenho mais. Alguém cuidava de mim e da minha família, num modus operandi bem típico da classe média brasileira: nossa empregada doméstica. Tão logo o distanciamento social foi recomendado, nós a autorizamos a ficar em casa, com seus filhos, agora sem aulas. Lá no fundinho, confesso, achávamos que era só uma pausa, tudo voltaria ao normal. Ainda deixamos o caos se instalar, na ilusão que nossa fada viria com sua varinha de condão.

A verdade é que mal terminamos de tomar o café da manhã, desfazer a mesa e ler os jornais, já é hora de pensar no que faremos para o almoço e, quem sabe, aproveitar o sol para estender roupas. Pendura, recolhe, dobra, guarda. Como sujamos tanta roupa? As louças por lavar parecem se reproduzir como coelhos. Passamos o aspirador anteontem e já tem pó de novo? O educador físico manda as aulas por vídeo. Farei as sequências, garanti ao personal, ainda iludida. Enquanto eu ia à musculação no longínquo 2019, ela fazia todo aquele trabalho invisível. Enquanto eu escrevia uma crônica, ela fazia a lista de compras no supermercado.

Fico me perguntando se teria tido o mesmo desempenho profissional caso fossem meu encargo as tarefas domésticas — provavelmente, não. Para que eu pudesse voar para longe, alguém tinha que estar aqui, com os pés bem fincados no presente. Foi assim toda a vida. Alguma mulher sempre cuidou de mim, permitindo que trilhasse o caminho das conquistas reservadas aos homens. O trabalho valorizado, em termos financeiros e políticos, é o externo. Mas é o cuidado da vida, não remunerado ou mal pago, que dá condições para que a humanidade se reproduza. Alguém cuida dos alimentos, da casa, das roupas, das crianças, dos doentes, dos idosos, da água, do fogo, do aconchego, para que outros ganhem dinheiro no setor dito produtivo.

A vida doméstica não se presta à fuga, ela é presença. Não é abstrata, é concretude. Um lar que te acolhe está longe de ser um território conquistado, é um jardim a nutrir repetidamente. Minhas outrora importantes ocupações podem esperar. Aquela tarefa talvez fique para amanhã, a fome, a sede e o atendimento às pessoas que amo, não. A lista de atividades foi apagada da parede — vou fazer o que der, depois que fizer o essencial. O dia de hoje é o único que tenho. É tempo de cuidar de quem cuida.

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Ana Severo

Amante da literatura. Contadora de histórias. Economista, Gestora de políticas públicas, feminista, engajada em ações por um mundo de mais cuidado.